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Mal-estar na civilização atual

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O que é o mal-estar na civilização?

Em um texto intitulado “O mal-estar na civilização”, de 1930, Freud descreve as tensões inevitáveis e insolúveis entre as demandas do indivíduo e da sociedade em que habita. Explorando o que Freud vê como o importante choque1 entre o desejo de individualidade e as expectativas da sociedade, o livro até hoje é considerado uma das obras mais lidas e estudadas de Freud, e um dos pilares da cultura do século XX, mesmo fora do campo da psicologia.

As ideias subjacentes ao texto parecem ser a de que o homem, se fosse um ser inteiramente natural, seria um animal totalmente instintivo e voltado apenas para o prazer. A cultura humana é tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima da simples natureza e distingue a vida dos homens da vida dos bichos. Ela abrange, por um lado, todo o saber que o homem produziu para controlar as forças da natureza e, por outro, significa também a criação de instituições necessárias para controlar a relação entre as pessoas.

As duas coisas, exigências instintivas e controle delas, parecem ser algo imanente2. A distinção entre elas é apenas um exercício teórico, sem consubstanciação material. Nesse sentido, o que impede que o homem seja um ser inteiramente instintivo são as defesas representadas pela civilização (Freud não faz diferença entre civilização e cultura). Ele alega que a civilização é constituída pela educação, normas sociais, vida intelectual, artística e moral e religião vigentes em uma época e em uma região, que são maneiras de se contrapor aos instintos.

Quais são as causas do mal-estar da civilização?

Para Freud, cultura e civilização são antônimos de barbárie, entendida esta como a prevalência3 dos impulsos do mais forte sobre o mais fraco. Essa oposição entre as demandas dos instintos e as da civilização causam um permanente e inevitável incômodo (mal-estar) entre as pessoas civilizadas.

Todos os seres humanos portam naturalmente tanto as exigências instintivas quanto as maneiras de controlá-las, e o conflito entre elas parece por isso ser alguma coisa inerente à espécie humana e não uma ocorrência aleatória ou conjuntural. Sem nenhum grau de satisfação instintiva e sem nenhuma defesa contra os instintos, a vida humana seria inviável.

Portanto, ditos de que “estamos vivendo uma crise”, que todas as pessoas ouviram desde pequenas, é, na verdade, uma realidade permanente e inevitável da vida social, e não de um momento determinado da evolução, se compreendemos por crise o conflito entre as exigências dos instintos e da civilização.

O que hoje tão fartamente se chama de ansiedade e que, em diferentes graus, parece acometer todas as pessoas, talvez seja um reflexo desse mal-estar. Se assim for, a Medicina, que procura solucionar a questão com medicações, estaria medicalizando uma questão humana ôntica (relativa ao ser), que deveria ser abordada em outro plano.

Leia sobre "A estrutura da personalidade segundo a Psicanálise", "O desenvolvimento da personalidade" e "Testes de Personalidade".

Quais são as manifestações do mal-estar na civilização atual?

Como disse o próprio Freud no que se refere ao indivíduo e que se pode aplicar também à civilização, o equilíbrio entre essas duas forças em oposição com o tempo tende a se deslocar no sentido da satisfação instintiva. Afinal ela parece ser mais atraente e poderosa que as defesas que se erige contra ela. É por isso que as sociedades, depois de alcançarem um estado altamente evoluído, num certo momento histórico, acabam por se degenerar e voltar, em épocas posteriores, a um estágio mais primitivo.

Segundo ele, existiria uma tendência primitiva e bárbara do ser humano de buscar, de forma instintiva, a satisfação do seu prazer a qualquer custo. Isto ocorreria desde o início da infância, quando a instância instintiva é ainda dominante. Ainda na infância e começo da adolescência, a pessoa começa a observar que também pode extrair algum prazer da vida social, embora não tão nítido e intenso como o oriundo dos instintos, mas menos bárbaro que ele. Com o tempo, ela percebe que a convivência com outras pessoas pode gerar satisfações e aprende a suportar melhor os desconfortos entre indivíduo e sociedade.

O mal-estar na civilização apontado por Freud é radical e atemporal, mas as respostas a ele vão mudando de acordo com os contextos sociais de cada momento e cada civilização. Na atualidade, as manifestações clínicas do sofrimento psíquico são bem diferentes das paralisias e nevralgias com que se deparou Freud nos quadros das histerias.

Há décadas passadas, a realidade social, cultural e econômica era diferente de hoje. As instituições eram fortes e determinavam com firmeza o permitido e o proibido, o certo e o errado. Havia um conjunto rígido de valores universais que orientava a conduta das pessoas.

Atualmente vivemos uma situação social em que os valores são mais fluidos e flexíveis e o papel da educação, da família, da escola e da religião vem sofrendo profundas mudanças e flexibilizações. As apresentações clínicas mais comuns na queixa dos pacientes atuais englobam as depressões, a ansiedade, os distúrbios alimentares, a dependência química e de álcool, as manifestações psicossomáticas e o consumo excessivo de medicamentos, dentre outros.

Paralelamente, há uma maior desorganização da vida social de maneira a favorecer mais a satisfação dos instintos: aumento do consumo de drogas, maior liberação da sexualidade, maior agressividade e menor obediência aos preceitos da moral e da religião. Na atualidade, o sujeito completamente desamparado por outros meios busca aplacar seu "mal-estar" por meio de ansiolíticos, antidepressivos, adição a drogas e comportamentos não tradicionais.

Tendo-se em vista a força que têm as demandas instintivas, é de se esperar que uma tal tendência caminhe até um ponto máximo em que a vida social então se demonstre inviável e a partir do qual se instale um movimento defensivo de retrocesso.

Veja também sobre "Mecanismos de defesa do ego", "Instintos e 'Imprinting'" e "Formação reativa".

 

Referências:

As informações veiculadas neste texto foram extraídas principalmente dos sites da Biblioteca Virtual em Saúde e da Salem State University.

ABCMED, 2022. Mal-estar na civilização atual. Disponível em: <https://www.abc.med.br/p/psicologia-e-psiquiatria/1425880/mal-estar-na-civilizacao-atual.htm>. Acesso em: 28 mar. 2024.
Nota ao leitor:
As notas acima são dirigidas principalmente aos leigos em medicina e têm por objetivo destacar os aspectos mais relevantes desse assunto e não visam substituir as orientações do médico, que devem ser tidas como superiores a elas. Sendo assim, elas não devem ser utilizadas para autodiagnóstico ou automedicação nem para subsidiar trabalhos que requeiram rigor científico.

Complementos

1 Choque: 1. Estado de insuficiência circulatória a nível celular, produzido por hemorragias graves, sepse, reações alérgicas graves, etc. Pode ocasionar lesão celular irreversível se a hipóxia persistir por tempo suficiente. 2. Encontro violento, com impacto ou abalo brusco, entre dois corpos. Colisão ou concussão. 3. Perturbação brusca no equilíbrio mental ou emocional. Abalo psíquico devido a uma causa externa.
2 Imanente: 1. Que está inseparavelmente contido na natureza de um ser ou de um objeto; inerente. 2. Em filosofia, é aquilo que permanece no âmbito da experiência possível, agindo na captação da realidade através dos sentidos. Referente à dimensão concreta, material, empírica da realidade.
3 Prevalência: Número de pessoas em determinado grupo ou população que são portadores de uma doença. Número de casos novos e antigos desta doença.
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